Humberto
Mariotti
Parapsicologia
e Materialismo Histórico
UMA FILOSOFIA DA AÇÃO
A práxis marxista encontra neste livro uma crítica
serena. E porque é serena, simpática. Humberto Mariotti não se inscreve na fileira
dos críticos gratuitos ou políticos do marxismo. Sua intenção é descobrir a
verdade social, como foi a intenção de Marx. Por isso mesmo, a critica a Marx e
sua doutrina não é o objeto deste livro, mas apenas o acessório. Aparece
circunstancialmente, nos momentos, em que a visão da problemática social,
submetida ao critério avaliativo da dialética espírita, ressalta ao mesmo tempo
os acertos e os desacertos da sistemática materialista.
Se Marx acreditou que a dialética de Hegel estava de ponta-cabeça,
Mariotti não pensou isso da práxis marxista, mas procurou socorrê-la nas suas
deficiências. Seu capítulo sobre Marx e Kardec, antecedido de um sobre marxismo
e Espírito, deixa isso bem claro. Longe do sectarismo e, portanto, da paixão, fugindo
aos simples jogos de palavras, enfrentando as proposições revolucionárias com lucidez
filosófica, Mariotti é a antítese dos críticos interesseiros. Sua crítica se
define no campo do paralelismo, na busca de elementos esclarecedores, no confronto
positivo, como se vê nesta corajosa afirmação: “Karl Marx e Allan Kardec
encarnam nos novos tempos as duas grandes inquietudes do pensamento contemporâneo:
o fenômeno social e o fenômeno espiritual”.
Para Mariotti, a concepção marxista do homem se ressente do
aspecto fundamental, que é o espiritual. A concepção kardeciana supre essa
falha, não mais em termos abstratos, como no velho idealismo, mas em termos
concretos e, portanto, existenciais.
É o homem-espírito de Kardec que dá sentido
histórico e moral ao homem-econômico de Marx. E temos assim um novo
homem, constituindo-se em pessoa humana, cuja responsabilidade não se restringe
a uma classe, a uma determinada categoria social, mas se abre na perspectiva de
um humanismo universal e ativo.
Ao encarar essa nova dimensão do homem, ao superar com essa
síntese os conflitos do passado e do presente, Mariotti enfrenta o último
aliado do marxismo, que é o existencialismo de Sartre. Reconhece a validade do
método existencial de abordagem da problemática do Ser, mas demonstra que o Ser
não pode estar compreendido nos limites efêmeros da existência. O homem do mundo não é para ele o alfa e o ômega da
reflexão sobre o Ser, mas apenas a porta de entrada para a solução do grande problema.
À maneira de Heidegger, é por essa porta que ele entra, certo de que a problemática humana, em seu aspecto
imediatista, não nos oferece a existência em si, mas tão somente uma forma de
existência. O existir, na verdade, é uma função do Ser, nele implicada e jamais
a implicá-lo. Ser e existir se mostram na sua realidade concreta, não apenas
verbal, mas como entes que se fixam no fluir da duração, recortando-se
no tempo.
De ambos resulta, na dialética espírita de Mariotti, o ente
social, que na forma da rés ou coisa do fato social de Durkheim,
constitui a sociedade. Na perspectiva existencial em que nos encontramos é mais
fácil a redução (evidentemente fenomenológica) do Ser ao ente, para
depois, através do ente, remontarmos ao Ser. A lei dialética da negação
da negação deve ser aplicada em sua plenitude, completando-se na reversão
final, que Sartre não quis fazer, para que a problemática do Ser se esclareça.
Da mesma maneira, o problema social, que se entranha
naquela problemática, só encontra solução no momento em que o revertemos do
social ao moral, através do ontológico. Daí o interesse de Mariotti pela
parapsicologia, que é o instrumento adequado, no campo das ciências positivas,
para arrancar o mundo contemporâneo do organocentrismo em que se fechou. As
pesquisas parapsicológicas quebram a casca dessa concepção materialista que
reduz o homem ao seu organismo, permitindo ao investigador tocar com o dedo a anima,
essa ideia platônica que se projeta na existência como para-si, não
para frustrar-se na morte, como quer Sartre, mas para nela completar-se, como
percebeu Heidegger. O destino do homem não é a frustração da morte, mas a
vitória da vida, conquistada na existência. Por isso, a existência não é uma
inconsequência, mas uma responsabilidade que só se pode medir em função do
Infinito.
Do Ser concreto que anima o homem, que lhe dá o movimento e
a consciência entre as coisas, e que por isso mesmo o destaca das coisas,
Mariotti parte para o universo moral, que é uma consequência natural, e,
portanto lógica e necessária, do processo de projeção do Ser na existência.
Existir é realmente transcender, como ensina Karl Jaspers, e a transcendência
se faz em dois sentidos: o horizontal, que é o fenômeno social, e o
vertical, que é o fenômeno espiritual.
No primeiro, temos a sociedade e todas as suas implicações;
no segundo, a moralidade e sua atualização palingenésica. O social se
resolve em moral quando a existência não se fecha no círculo vicioso dos
valores materiais. Porque a finalidade mesma da existência é promover “a
desmaterialização dos valores econômicos e materiais”. Mas isto só é possível
através da moralização crescente do homem, que se verifica como podemos ver na
história, em razão inversa da acumulação egoísta dos valores materiais.
Assim, a história se reverte em palingenesia, essa antiga e
nova forma do futuro, era que o passado e o presente se fundem numa
supra-realidade, precisamente aquela em que surge a possibilidade da síntese em-si-para-si,
que Sartre nega. Mas o em-si-para-si não é apenas aspiração, não é
um sonho ou um possível arquétipo, e sim uma realidade crescente, que se
atualiza em nós mesmos à proporção em que o captamos em nossa percepção consciente
da vida. Os exemplos históricos nos mostram essa realidade inegável, mas até
agora obscurecida pelo dogmatismo fideísta das religiões e pelo dogmatismo
cético das ciências.
Curioso notar como a dialética de Mariotti segue a linha hegeliana
e ao mesmo tempo se confirma na tese marxista. O que mostra que Marx, em vez de
pôr a dialética de Hegel em pé, apenas acolheu-se à sua sombra. Porque a sombra
da dialética espiritual de Hegel é a realidade histórica em que ela se projeta.
Mariotti se recusa a contemplar as sombras da caverna de Platão, preferindo
romper os grilhões do materialismo histórico para ver as coisas reais do mundo
à plena luz do sol. É assim que ele nos oferece a dialética do Espírito, em que
o movimento da vida não se reduz à agitação inconsequente do sensível, mas
se expande na serenidade responsável do inteligível.
Nessa nova dialética, que é a síntese das anteriores, que
faz do movimento o meio de transição e o ponto de encontro do espírito e
da matéria, as divergências ideológicas do mundo contemporâneo, — simples
equívocos do pensamento, em seu processo dialético de atualização, — são
absorvidas numa nova forma conceptual.
A tônica dessa nova concepção é a realidade espiritual do
povo, é o povo tomado como a comunhão de consciências de que nos
fala René Hubert, o povo construindo a República dos Espíritos (a que alude
o mesmo Hubert), o povo na sua plenitude democrática determinada pela igualdade
espiritual do Ser, que anima todos os entes e em consequência o ente
social. Partindo, assim, do Ser, essa abstração verbal, essa figura
gramatical do espiritualismo alienado ao dogmatismo fideísta, Mariotti atinge a
realidade concreta do Ser no individual e no social.
É a este Ser, que no ente do homem representa o
próprio homem, que compete agir para libertar-se do egocentrismo escravizador, para
superar o egoísmo que o coisifica entre as coisas do mundo. A
história, como suceder temporal das coisas (os fatos sociais tomados
também como coisas) transforma-se na metamorfose espiritual do homem e da
sociedade. Ao materialismo histórico, que coloca a sua ênfase nos valores
econômicos, sucede a dialética do Espírito, que desmaterializa os valores
contingentes para transformá-los em valores eternos do espírito. A atualização que
Marx pretendeu realizar na transformação material do mundo, evitando a fuga
espiritual das religiões, Mariotti realiza na transformação espiritual do
homem.
Porque o homem é o mundo, e uma filosofia da ação, que
transforma a potência em ato, não pode contar apenas com a vontade de
potência, mas também e, sobretudo com a consciência moral. Mariotti
anuncia, assim, o homem e a sociedade numa nova civilização, que não surgirá
por acaso, mas através da vontade consciente do homem atual, que é o único
possível construtor do futuro. Os valores existenciais projetam-se além da existência,
porque esta é apenas um ente, um fenômeno, um momento na
duração, que pode converter-se no instante kierkegaardiano, ligando o
finito ao infinito. As injustiças sociais, geradas pela brutalidade
egocêntrica, não podem ser sanadas por uma brutalidade sociocêntrica. Só um
homem-humano poderá construir uma sociedade humana. A filosofia da ação que o
espiritismo nos oferece é o caminho dessa realização, mas esse caminho só pode
ser seguido pelos espíritas conscientes da responsabilidade doutrinária.
É por esse motivo que Mariotti insiste na distinção entre o
espiritualismo misoneísta que, como o ocultismo alemão, serviu ao
nazismo, e o espiritualismo participante que penetra a alma do povo e a
ela se liga, resultando no fenômeno da mediunidade social, condutora dos
povos. Os espíritas que temem os problemas sociais e políticos pertencem ao
primeiro tipo, são misoneístas extraviados no seio de um movimento
espiritual renovador do mundo. Mas a participação espírita não é
partidária, nem é política no sentido comum do termo. A revolução espírita não
é um ato de violência, nem pode aceitar a violência, que é a negação do princípio
de fraternidade, um crime contra o amor. Só a consciência da responsabilidade
doutrinária, que resulta do conhecimento e da vivência da doutrina espírita,
arma o homem para enfrentar a nova perspectiva política e revolucionária do
espiritismo.
Mariotti acentua que a revolução espírita supera
todas as anteriores, que transformaram sucessivamente o mundo. “Com o
espiritismo, — adverte, — haverá um encadeamento dialético do Céu com a Terra.
Os homens e as almas se unirão e as portas do Infinito se abrirão aos heróis e
aos lutadores, como um novo cenário para a divina palingenesia de todos os
seres. A humanidade, individual e coletivamente, recuperará a memória do
Eterno, tornando-se consciente do seu papel no grande plano da evolução
universal”.
As formas de ação do espiritismo não se conformam com as do
homem-mortal. São as formas de ação do homem-imortal que levam em consideração
não apenas o imediato, mas também o futuro. A filosofia da ação que este livro
nos apresenta é de natureza cósmica, mas, como dizia Léon Denis, considerando um
Cosmos em que a matéria se conjuga com o espírito e o tempo com a eternidade.
A participação do espírita não quer dizer engajamento
político ou ideológico, mas compreensão e vivência dos princípios de
fraternidade, em favor ao mesmo tempo de vítimas e algozes, pois tanto é
escravo da miséria o pobre explorado quanto o rico explorador. Esta nova
mensagem, — que é tão velha quanto o mundo, mas só agora começa a tornar-se
acessível à compreensão humana, — precisa ser meditada pelos espíritas
conscientes de sua responsabilidade doutrinária. E ninguém melhor do que
Mariotti para ajudá-los nessa meditação.
J. Herculano Pires
Fonte: PENSE - Pensamento Social Espírita
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Algumas mensagens são atemporais e tem sabor de eternidade. Tanto a Introdução quanto o livro em si tem essa qualidade. Da minha leitura com os cabelos ainda pretos, na tenra juventude muito tempo se passou e muitas ideias estiveram de passagem pela minha mente. Mas um texto bem escrito é sempre saboroso. Faz do tempo investido nele uma pequena joia em nossas mãos, para uso perene.
Ontem ainda, assisti uma entrevista com Jorge Eduardo Rivera, professor universitário no Chile. Tradutor de "Ser e tempo" de Martin Heidegger. Dizia ele que a anterior tradução era complexa demais, e lhe requisitava horas na preparação de cada aula. O convite da editora para que se dedicasse a nova tradução foi uma das coisas que mais o honraram e ao mesmo tempo motivo de prazer. Na entrevista Rivera expoe de forma simples as teses centrais do pensamento de Martin. Herculano compreende perfeitamente a questão ontológica de Heidegger.
A questão do Ser aberto à vida.
Diz meu professor Feinmann: Heidegger é o maior filósofo ocidental. Eu ainda não me encontro capacitado para reafirmar sua assertiva ou para negá-la. Mas venho pouco a pouco me acercando do pensamento heideggeriano no sentido de compreende-lo, e compreende-lo como uma continuidade mais ampla do pensamento de seu predecessor na reitoria da Universidade Edmund Husserl.
O pensar de Heidegger tem, como o vejo, uma forte ligação com a Fenomenologia de Husserl.
Mas isso é uma outra questão. Vale o texto de Herculano Pires como um alerta a todos os pensadores do espiritismo como motor de transformações sociais.
Paulo Cesar Fernandes
11 07 2014
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