segunda-feira, 19 de julho de 2010

Kant, autonomia do espírito e moderna moralidade

Está errado, se você ao ler moderna moralidade imaginou sua atual existência, ou mesmo a minha, quando tinha pretos e longos os cabelos.
Falo em modernidade mirando a história a partir de Descartes e do Iluminismo para cá. Esse período onde o homem encontra sua subjetividade, e com ela ocupa seu devido espaço na história pautado pela razão. Derrotando com esta os preceitos e preconceitos a ele impostos do exterior por anos e anos a fio, quer pela família, pela Igreja, ou pelas autoridades do Estado. É quando o homem perde o medo de seu pensamento e se projeta como ente autônomo e capaz de gerir o seu destino, quer no âmbito individual, que no social. A Revolução Francesa é decorrência natural dessa efervescência de ideias.


Mas tomemos o momento de Kant.


Já não mais havia a relação do homem com a natureza tal qual na Antiguidade, com o Cosmos como modelo. Já não mais centrado numa divindade, ou na divindade feita carne como é o caso do cristo.


Para Kant, em Crítica da Razão Prática, as ordens indiscutíveis recebidas pelo homem através da razão são imperativos categóricos.


E por que imperativos?


Por se contraporem ao natural egoísmo encontrado em cada um de nós. Há entre nosso egoísmo e tais imperativos tal confronto que só a razão (no caso a razão visando um contexto social mais amplo) é capaz de ordenar.


A ética moderna estava assim estribada em dois princípios:


a) A intenção desinteressada de nossa ação;


b) A universalidade dos fins por nós escolhidos.


O desinteresse de nossas ações é de fácil compreensão.


O aspecto da universalidade é necessário lembrar que Kant advogava a necessidade de nossas ações serem úteis a um número maior de pessoas possível.


O agir do homem distanciado do seu particular interesse, e direcionado ao universal, acaba por ter um caráter ético, que segundo Kant depende de “boa vontade”, característica capaz de ser encontrada em todas as pessoas, independentemente de seu padrão social ou cultural.


Este pensamento de Kant inaugura na história da humanidade, o valor do mérito individual no tocante a seu agir no mundo. Opõe-se tanto à visão grega, quanto à da virtude (através da fé) propalada pelas religiões.


Ou será que eu estou errado?

Precursores ou colegas de equipe


 
Na cidade de Curitiba faz muitos anos se realizou um evento chamado de O Século de Kardec, cuja proposta era de contextualização do pensamento do fundador do espiritismo com o ambiente cultural de seu tempo.
E quando digo cultural, me refiro a isto de uma forma mais ampla, englobando filosofia, ciência, arte e tudo o mais que a palavra cultura possa abarcar.


Um dos trabalhos apresentados me chamou a atenção naquela ocasião. Tratava do estreito vínculo entre a estrutura racional de Kardec, e a obra de Descartes, um dos meus referenciais. Segundo o trabalho, até onde a memória mo permite, o primado da razão se estabelecia soberanamente, tanto num como noutro dos autores.


Mas, o tempo faz que cotejemos novos referenciais, não para com eles concordar, mas para inserir em nosso repertório.


É nessa perspectiva que venho me acercando do pensamento de Leibniz.


Algumas vezes, lermos algum texto, e nele sentirmos, “farejamos” um conhecimento prévio. Não chega a ser um dejàvu pois está no âmbito da razão tão somente.


Isso ocorreu com o texto de Leibniz que segue adiante. Em algum ponto do livro dos Espíritos teria eu, já na juventude, me defrontado com um raciocínio não semelhante, mas idêntico. Muito embora o objeto de estudo de Leibniz nesse texto seja a mente e não Deus.


Inicialmente passemos pelo trecho de Leibniz para mais adiante verificar o que lhes alerto no que diz respeito ao nosso Kardec ou aos espíritos que com ele colaboraram. Vamos lá...


Meditação sobre o princípio de individuação.
(Meditatio De Principio Individui)
G. W. Leibniz
1º de abril de 1676

Nós dizemos que o efeito envolve [involvere] sua causa; de maneira que todo aquele que entende perfeitamente o efeito irá, também, alcançar o conhecimento da causa. Pois é necessário que haja alguma conexão entre uma perfeita [integram] causa e o efeito. Mas, por outro lado, há esse obstáculo: que diferentes causas podem produzir um efeito que é perfeitamente o mesmo.


Aqui temos a idéia de causa e efeito, mas não com a concepção mística apresentada pelos Centros Espíritas. Neste texto, dado um determinado fenômeno, tal fenômeno seria decorrente de uma causa. E pronto. Nada a ver com aspectos existenciais.

Kardec, na Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita, em O Livro dos Espíritos, se vale desse raciocínio.
Em primeiro lugar explica a alma segundo a concepção materialista. Em seguida, dá a saber, em suas palavras, a questão grega da Theoria, a concepção do cosmos como a perfeição maior a qual o homem deveria seguir, tal concepção advogava a idéia do homem se reintegrando ao Cosmos, perdendo assim a sua individualidade.
(para maiores detalhes sobre a Theoria grega ler Luc Ferry, Aprender a viver, cap. 2).
Vejamos kardec:


Segundo uns, a alma é o princípio da vida material orgânica. Não tem existência própria e se aniquila com a vida: é o materialismo puro. Neste sentido e por comparação, diz-se de um instrumento rachado, que nenhum som mais emite: não tem alma. De conformidade com essa opinião, a alma seria efeito e não causa.


Pensam outros que a alma é o princípio da inteligência, agente universal do qual cada ser absorve uma certa porção. Segundo esses, não haveria em todo o Universo senão uma só alma a distribuir centelhas pelos diversos seres inteligentes durante a vida destes, voltando cada centelha, mortos ou seres, à fonte comum, a se confundir com o todo, como os regatos e os rios voltam ao mar, donde saíram. Essa opinião difere da precedente em que, nesta hipótese, não há em nós somente matéria, subsistindo alguma coisa após a morte. Mas é quase como se nada subsistisse, porquanto, destituídos de individualidade, não mais teríamos consciência de nós mesmos. Dentro desta opinião, a alma universal seria Deus, e cada ser um fragmento da divindade. Simples variante do panteísmo.
Segundo outros, finalmente, a alma é um ser moral, distinto, independente da matéria e que conserva sua individualidade após a morte. Esta acepção é, sem contradita, a mais geral, porque, debaixo de um nome ou de outro, a idéia desse ser que sobrevive ao corpo se encontra, no estado de crença instintiva, não derivada de ensino, entre todos os povos, qualquer que seja o grau de civilização de cada um. Essa doutrina, segundo a qual a alma é causa e não efeito, é a dos espiritualistas.

No texto da conclusão do Livro dos Espíritos, esse tipo de raciocínio ainda se apresenta:

Se é certo que, entre os adeptos do Espiritismo, se contam os que divergem de opinião sobre alguns pontos da teoria, menos certo não é que todos estão de acordo quanto aos pontos fundamentais. Há, portanto, unidade, excluídos apenas os que, em número muito reduzido, ainda não admitem a intervenção dos Espíritos nas manifestações; os que as atribuem a causas puramente físicas, o que é contrário a este axioma: Todo efeito inteligente há de ter uma causa inteligente; ou ainda a um reflexo do nosso próprio pensamento, o que os fatos desmentem. (Grifo meu)




Me parece claro que, estes espíritos ligados à filosofia, por suas preocupações com a ética, com a formação de um mundo melhor em nosso planeta, de uma forma ou de outra contribuíram para a formação do arcabouço teórico que resultou no trabalho de Kardec. Suas  idéias perpassam toda a obra segundo consigo perceber.

E Kardec, por sua seriedade e formação humanista foi sem dúvida o núcleo aglutinador de todas estas inteligências precedentes na Terra. Aqui me refiro a Descartes, Leibniz, Rousseau e, por suposto Kant entre outros.
Está claro também o fato das ideias propostas por Kardec nada trazerem de novo pelo fato de serem elas de uma certa forma componentes do senso comum entre os espíritos pensantes desde o Renascimento. A idéia da imortalidade da alma então, tem ainda mais remota a sua raiz.

Ou não?