sábado, 12 de maio de 2012

Descartes - Separação Alma e Corpo

Separação Alma/Corpo    »    DESCARTES


Assim, uma vez que nossos sentidos às vezes nos enganam, decidi supor que nada era tal como eles nos levaram a imaginar. E uma vez que existem pessoas que cometem erros de raciocínio e falácias lógicas mesmo no tocante às mais simples matérias da geometria, e julgando que eu estava tão propenso ao erro quanto qualquer um, decidi rejeitar como infundados todos os argumentos que previamente tomara como provas demonstrativas. Por último, considerando que os mesmos pensamentos que temos durante a vigília podem também ocorrer quando dormimos, sem que qualquer um seja, na ocasião, verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que já penetraram em minha mente não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas imediatamente notei que enquanto tentava nessa via supor que tudo fosse falso, era necessário que eu, que pensava isso, fosse alguma coisa. E observando que essa verdade, "Eu estou pensando, portanto eu existo", era tão firme e certa que mesmo as mais extravagantes suposições dos céticos eram incapazes de abalá-la, decidi que poderia aceitá-la sem escrúpulo como primeiro princípio da filosofia que procurava.


Em seguida, examinei atentamente o que eu era. Vi que conquanto pudesse supor não possuir um corpo e não haver um mundo ou lugar para eu estar, não poderia por nada supor que eu não existisse. Pelo contrário, notei que do mero fato de que eu pensasse em duvidarda verdade de outras coisas seguia muito evidente e certamente que eu existia. E se eu cessasse de pensar, mesmo que tudo o mais que sempre imaginei fosse verdadeiro, esse fato não me teria deixado qualquer razão para acreditar que eu tivesse existido. Disso, reconheci ser uma substância cuja essência ou natureza total é unicamente pensar e, para existir, não requer qualquer lugar ou depende de qualquer coisa material. De acordo com isso, esse "eu" - isto é, a alma pela qual sou o que sou - é inteiramente distinto do corpo e, na verdade, é mais fácil de conhecer que o corpo, e não deixaria de ser tudo o que é mesmo que o corpo não existisse.


O parágrafo final contém a primeira tentativa de Descartes (ele apresentaria outros argumentos em trabalhos posteriores) para provar a natureza imaterial da mente. É importante, incidentalmente, não ser desviado pelas ressonâncias modernas levemente religiosas ou "espirituais" do termo "alma", que ocorre na última sentença. Descartes usa l'âme ("alma") e l'esprit ("mente") mais ou menos indiferentemente, simplesmente para se referir ao que quer que seja consciente, ou pense - a "coisa pensante" (res cogitans), como ele mais tarde chamaria nas Meditações. E sua conclusão, aqui no Discurso, como em trabalhos posteriores, é que o eu pensante consciente - "esse 'eu' (ce moi) pelo qual sou o que sou" - é inteiramente independente de qualquer coisa física e, na verdade, poderia sobreviver à completa destruição do corpo (incluindo, sejamos claros, o cérebro).


Nota: o grifo é meu para demarcar claramente o ponto.
Paulo Cesar Fernandes

12/05/2012