sábado, 19 de abril de 2014

20140420 Provável trajetória.

Provável trajetória


Desta vez nasci em Sanros, São Paulo, Brasil.


Da outra, imediatamente anterior, foi de breve curso no início do século, em São Paulo a boemia me chamava pelo nome, e as noites eram meu espaço de viver entre poetas e músicos, prostitutas e um enxame de outros pintores, poetas e marginais urbanos. Tempo aberto ao novo ao experimento.


Uma vida intensa demais para um corpo mal cuidado. Emoções profundas e inimizades ferozes. Não recordo das circunstâncias, mas uma leveza tomou conta de mim, e me vi diante de outros poetas; estes já todos mortos, todos ao meu redor e me dizendo para não perder tempo, devíamos voltar aos bares, e mais tarde eu
entenderia. Achei estranho deixar ali um corpo que era eu... mas a boemia estava me chamando junto à saudade dos velhos amigos que reencontrava, tudo era confuso e alegre até certo ponto. Fiz um poema e alguém escreveu meu poema. E não me deu a menor satisfação pelo fato. Ia contestar mas meus velhos amigos
riram e fomos a outro bar...


No sul dos Estados Unidos fui um negro forte, trabalhava muito colhendo algodão, e brigava mais que trabalhava. Gostavam da minha voz e eu cantava, claro em troca de uns tragos, sempre amaciam a voz e o coração. Aquele Rio Mississippi sabe de minha vida. De cidade em cidade. Quando as coisas enrolavam aqui me
punha no trem e la ia eu. Em cada cidade um novo nome: Joe Tally; Anderson White; Brown Dog; e amantes. Um tiro. O sangue quente escorrendo no peito e ninguém por perto na  noite chuvosa. E me veio o sono afinal.


Já antes, muito antes, vivia atrás de Mãe Negra numa fazenda aqui no Brasil. Habitava mais o barraco das comidas que a casa dos pais. De moleque roubava doces e sempre salvo pela Mãe Negra, sempre meio gorda e como me abraçava. "Leque ruin" e ria, "Cade o doce?, eu apontava a barriga, e ria dela, e corria dela. "Te pego, leque ruin.".


Chega o tempo de não ser mais moleque. Quando o pai proibiu de viver la no barraco das comidas. Foi quando "Mãe Preta" virou "Nhá Nega" e a gente só se via quando tudo era silêncio, rerolava no canto dela até boca da manhã. Eu sumia nessa hora, na cama dormia logo, e nunca gostava de acordar. Descobriram, e fui fora
estudar. Mas nada separa o que é direito. E coração não perde afeto nunca. Eu adulto de todo, ela avançada nos anos e o mesmo carinho, o mesmo prazer de estar juntos. E conversa nunca faltava. Eu mentia estórias só prá me alegrar de ver ela rir. Falava das aulas, da cidade, professores, criticava tudo, e dizia da saudade de ser menino de novo.


Até hoje lembro a alegria de conseguir roubar os doces e ver ela brava comigo. Ralhava da boca prá fora e ria por dentro. Eu bem que sabia, mesmo menino a gente sabe do coração.


Até hoje lembro sua primeira visita aqui em Santos. Eu tinha 18 ou menos de idade. Sua toca branca e sua bondade encheram a sala onde eu ouvia música. Chamou prá trabalhar com ela na casa dela: era uma Tenda de Umbanda. Não falou, mas preocupava com as drogas que andavam entre nós.Tentou algumas outras vezes me levar para a umbanda; até que convidei para ir no Centro que eu fazia parte. Se negou. Demorou um tempo, mas um dia apareceu. Usou meu corpo, falou o que quis e eu não lembro uma palavra. Minha única comunicação totalmente inconsciente.


Se me sente em perigo aparece. Me apoiou na minha separação de minha companheira. Em 2011, numa dor profunda me pareceu senti-la ao pé de mim, mas eu estava abalado demais para percebe-la mais claramente. Foi um ano horrível: morte em família e uma relação desastrosa.


E tem mais a contar. Já vivi entre os Povos Originários, e não foi por menos que na Ditadura Militar um plástico Vermelho em meu carro carregava o lema: "Pela demarcação das Terras Indígenas.". Duas coisas ali se firmavam, minha postura contra os militares, era esquerda na época; e meu vínculo com esses povos que ainda hoje sofrem mutilações e assassinatos frequentes.


Defender eu os Povos Originários é defender minha ancestralidade remota. Admito. É lutar em causa própria, e em prol de meus irmãos de sangue nalgum momento de minha existência.


Quem acha que "morreu acabou" nada sabe da vida. Abdicou das percepções mais sutis da existência.


Não me julgo ignorante. Adestrei por séculos para  chegar a alguma coisa mais distante da materialidade. Admito possam ser emanações do inconsciente; mas o inconsciente é também um repositório de vivências, capazes de aflorar aos gênios; ou, como eu, nos fatos mediúnicos.


Lembranças e emoções por certo nos eclodem em diversas ocasiões do inconsciente. Basta estar atento, e ver a projeção do real em flashes da existência.



Nota: Dedico à minha negra este rememorar carregado de afeto e muitas saudades. Sei das suas tarefas em dimensões mais avançadas, e a quero cumprindo-as como deve fazer.


Paulo Cesar Fernandes

20  04  2014

Nenhum comentário: